sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A Poesia, os Valores e a Crise (2)

Palavras quase desnecessárias para dois poemas de Carlos de Oliveira:

Na infância alternamos a criatividade do jogador de mundos e a escuta tensa de uma voz adulta a anunciar uma qualquer catástrofe final. Mais tarde, há quem opte pela previsão dos astrólogos (sagitário, peixes, gémeos, touro, virgem, etc.). Saturnos e soturnos. Mas há também quem opte, reinventando o jogador da infância, pela criação possível de mundos plurais. A predição dos astrólogos é dogmática e determinista, a dos inventores de jogos virtualiza mundos alternativos, aleatórios.
Depois há fronteiras (janelas, molduras) a enquadrar e condicionar o nosso olhar, e também diferentes posturas do observador. Há, além disso, vidros foscos, riscados, com bolhas, a iludir as nossas convicções. Tenhamos, pois, sempre em conta a orientação do corpo e das janelas da alma, quando analisamos o estado do mundo. Há sempre dúbias transparências no olhar. E é sempre bom reencontrar o jogador da infância obviamente impreciso na moldura já nublada pelo tempo. Mas cuidado, as tempestades de luz podem cegar os mais incautos. Os desenhos da criança já exprimiam simultaneamente os medos e os deslumbramentos.



Pintura de Paul Klee

ESTRELAS
O azul do céu precipitou-se na janela. Uma vertigem, com certeza. As estrelas, agora, são focos compactos de luz que a transparência variável das vidraças acumula ou dilata. Não cintilam, porém.
Chamo um astrólogo amigo:
«Então?»
«O céu parou. É o fim do mundo».
Mas outro amigo, o inventor de jogos, diz-me:
 «Deixe-o falar. Incline a cabeça para o lado, altere o ângulo de visão».
Sigo o conselho: e as estrelas rebentam num grande fulgor, os revérberos embatem nos caixilhos que lembram a moldura dum desenho infantil.


Pintura de Paul Klee
TARDE

A tarde trabalhava
sem rumor
no âmbito feliz das suas nuvens,
conjugava
cintilações e frémitos,
rimava
as ténues vibrações
do mundo,
quando vi
o poema organizado nas alturas
reflectir-se aqui,
em ritmos, desenhos, estruturas
duma sintaxe que produz
coisas aéreas como o vento e a luz.

Carlos de Oliveira (1921-1981)
Trabalho Poético (1976)

1 comentário:

  1. . . . e as ilustrações a condizer congenialmente com essas palavras de uma plasticidade impressionante. Como se não tivesse sido do meu tempo (mas era), não vim a saber nada deste "compositor".

    ResponderEliminar