sábado, 26 de março de 2011

A Morte Anunciada do Último Sebastianista

Ayer fuiste rey de Hespaña,
Oy no tienes un castillo.

Domingos Madeira

David - A Morte de Sócrates (1787)
O filósofo Sócrates (469-399 a.C.) matou-se com cicuta, após condenação pelas autoridades por corromper a juventude. Podendo optar pelo exílio, preferiu o envenenamento com o suco fervido desta planta da família das umbelíferas que tanto pode ser extraído das folhas como dos frutos. Foi um modo singular de assinalar a injustiça da sua condenação, um exemplo de coerência ética. Com a sua douta ignorância, defendia que o seu saber nada valia comparado com a verdadeira sageza, certamente algo incómodo para os poderosos, fortificados nas certezas absolutas das suas decisões. Era por isso um pensador incómodo.
Hoje escasseiam os que procuram no aprofundamento do conhecimento de si, como o fazia o filósofo grego, um fundamento da virtude.
O nosso Sócrates, 1º ministro que entretanto se demitiu, nada tem obviamente de comum com o seu homónimo de há uns milénios atrás. É engenheiro de obras toscas e político. E como é comum nos políticos, nunca olha para dentro de si, afivela a máscara, marca o ritmo da passada, acena às massas e nunca tem hesitações, ou melhor, aparenta não as ter.
Esta minha relação antroponómica nada tem de inocente, não que eu pretendesse um 1º ministro mais preocupado com a auto-análise do que com a governação. Mas a escolha do nome e não do sobrenome por parte da personagem, enquanto etiqueta política, também nada tem de inocente. De seu nome completo José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, também se poderia ter chamado apenas José, o que daria um bom mote para o poema "José", de Carlos Drummond de Andrade: "E agora, José?/A festa acabou,/a luz apagou,/o povo sumiu,/a noite esfriou,/e agora, José?".
Eis-nos, pois, desconfiados com esta ambivalente aproximação entre o político e o milenário filósofo. Será o político um fervoroso adepto da tradição socrática, ou o seu nome de guerra é um mero acto de marketing político?
Na cabeça confusa do povo um nome pode ser um capital simbólico. Porque apagou Sócrates o apelido?Mistérios da nossa cena política. Se por acaso se chamasse Manuel, não viria à baila o sobrenome? Imaginemos qualquer coisa como o nosso 1º ministro Manuel ou João ou António. Seria de um pirismo inaceitável. Mas Sócrates é outra coisa, até internacionalmente.
Com a reprovação parlamentar do estrategicamente cozinhado PEC IV com os poderosos da União Europeia, lá se demitiu o nosso, salvo seja, ministro-filósofo. Não seria uma tragédia se não vivêssemos há muito em plena catástrofe financeira, na tradição pantanosa de um seu antecessor.
Para uns, Sócrates foi uma vítima da estratégia e da retórica malignas das oposições, para outros, uma fuga hábil e astuta às teias desta conjuntura económico-social
O líder do PSD, Passos Coelho, por seu lado, começa finalmente a manifestar a sua fome de ir ao pote e emerge majestático na sua imagem televisiva. Não aparenta, no entanto, carências alimentares, apenas de medidas concretas para travar o salivar cada vez mais abundante dos mercados financeiros e dos seus “amigos” da UE.
Entre vivas, salvas e apupos, o Zé Povinho lá irá de novo em Junho pôr na urna (palavra inquietante neste naufrágio colectivo) os seus votos para mais um alegre corridinho, tão típico do nosso folclore. Ou então, porque não um ritmado fandango, bem mais viril e empertigado. Antes isso do que um fado, masoquista auto-contemplação da alma nacional.
Ensor - A Intriga (1890)
Preparem-se as máscaras para um carnaval estival. Eu já tenho uma na gaveta, vou mascarado de porreta e outra treta. Voto branco, voto negro, voto a vida e a morte – papelinhos e maçãs podres para atirar aos foliões deste meu país de “três sílabas de plástico”, como dizia o O´Neill.
"Votos e mais votos, a minha mão está cansada e das cruzes nem se fala. É uma dor pela espinhela  abaixo. Já não se aguenta" – diz um eleitor recorrente. "Estás enganado, cidadão. Tudo se aguenta, menos a voracidade do poder financeiro internacional "– é um anti-capitalista a sussurrar.
Mas,  caros políticos,  se em vez de discursos e arruadas fizessem dias de silêncio em homenagem à nossa fúnebre máscara final? Sejam grotescos, mas silenciosos; sejam patéticos, mas silenciosos. Não digam que sim nem que não, mas antes pelo contrário.   Não digam sobretudo, à “economês”, que fizeram o trabalho de casa. Deixem escutar a suave brisa matinal, sem algaraviadas nem corropios.
Enfim! Portugal, nosso destino perdido. Fizeram de ti um pedinte, mas com a mania das grandezas. "Não é de agora, mas de sempre. Impérios na mira, impérios a afundar-se" (voz  de um autodidacta em História). Ou, como diria Jorge de Sena, "terra de heróis a peso de ouro e sangue,/e santos com balcão de secos e molhados/no fundo da virtude..." ("A Portugal").
Mas podemos ainda vender as reservas de ouro, as auto-estradas bem embaladas, o BPN mesmo falido, a nova praia marítima de Mangualde com água salgada e tudo, os submarinos, o Centro Cultural de Belém, as parcerias público-privadas, os hospitais, a Torre de Belém, os Jerónimos, a ilha da Madeira com o Jardim e tudo. Seria um negócio de truz! Quanto ao povinho, mandem metade para o Pará e a outra para o canal do Panamá.
Costa Pinheiro - D. Sebastião (1966)
Na neblina do vazio, seríamos habitados por fantasmas, nesta ocidental praia lusitana desertificada. Finalmente, com todo o esplendor, eis que despontaria D. Sebastião com seu cavalo alazão a ocupar triunfal o deserto dos nossos sonhos e delírios colectivos, acompanhado de anjos barrocos, tangendo as dez mil guitarras de Alcácer-Quibir, numa épica ressurreição, ao ritmo das vagas heróicas wagnerianas (esta uma sugestão da Srª. Merkel ), sobrepondo-se ao som das dolentes guitarras. Mas o pobre do rei sempre desejado, no centro do Terreiro do Paço (exactamente no lugar da estátua de D. José, entretanto vendida em leilão), olha até onde a vista alcança e só vê vazio. Então, angustiado, interroga os anjos:
- Onde está o meu povo?



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