quarta-feira, 16 de março de 2011

As Novas Cruzadas de Cavaco Silva

João Abel Manta
 "Importa que os jovens deste tempo se empenhem em missões e causas essenciais ao futuro do País, com a mesma coragem, o mesmo desprendimento e a mesma determinação com que os jovens de há 50 anos assumiram a sua participação na guerra do Ultramar."
Discurso de Cavaco na Comemoração do 50º Aniversário do início da guerra colonial  (15/3/011)

Cavaco Silva, no melhor do seu estilo retórico e ideológico, sugere, como narrativa exemplar para a juventude de hoje, a acção «patriótica» de 1 milhão de jovens que, entre 1961 e 1974, sacrificaram as suas vidas em prol da «Pátria», na guerra do Ultramar. Nunca usa o adjectivo colonial, pois, para este distinto estadista, as colónias eram certamente províncias ultramarinas, à boa maneira salazarista. A linguagem nunca é inocente do ponto de vista ideológico. Aliás, convém analisar, no seu discurso, como os valores do esforço e da abnegação dos jovens de então são convenientemente descontextualizados historicamente. Naquela época, os jovens, quer estivessem ou não com a  política bélica do "fascismo" (conceito hoje quase em desuso junto de certos intelectuais, porque demasiado ofensivo para o chamado Estado Novo), eram forçados a combater numa cruzada anacrónica ou então condenados a sofrer as consequências da deserção, caso tivessem a coragem de resistir às concepções totalitárias do regime.
Segundo as estatísticas, teriam morrido nessa louca aventura 8.500 militares (caso confiemos neste balanço), fora as centenas de milhares de estropiados física ou psicologicamente.
A pátria é uma construção da vontade democrática de um povo, tal não era o caso do "antigo regime". Como sabemos, qualquer resistência à vontade imperial do "dinossauro", reinante nessa época, era violentamente reprimida. Não podemos apagar o clima de medo dos nossos "anos de chumbo", nem o policiamento quotidiano do corpo e do espírito.
Ora, regressando ao discurso do nossa Chefe Supremo das Forças Armadas, a descontextualização sociopolítica e histórica da guerra colonial produz um efeito ideológico de apagamento da nossa memória colectiva, de cariz eminentemente reaccionário. Aliás, numa gaffe célebre, foi a mesma personalidade que designou o 10 de Junho como o "Dia da Raça", uma simbologia comum à usada pelo Estado Novo.
Cavaco parece ser um misto de tecnocrata das finanças e um nostálgico dos tempos "heróicos" da luta, contra o rumo da História e a opinião maioritária do mundo, pela manutenção de um grandioso império colonial.
O tempo das "cruzadas" contra os "turras" ficará certamente na nossa História como uma mácula na narrativa colectiva, já com 900 anos de existência. Nunca poderá servir por isso de exemplo para o empenhamento da actual juventude na construção do futuro do País. Isso seria um verdadeiro contrasenso. A coragem, o desprendimento e a determinação dos nossos soldados na guerra colonial são uma mera ideologização fictícia que distorce o próprio sentido da nossa história recente. Nada destes valores se pode conceber em abstracto. A coragem ou a determinação para liquidar o "inimigo" numa guerra injusta e absurda não poderão ser as mesmas que hoje se exigem ao nossos jovens. Os sacrifícios por que passa a nossa juventude actual nada têm a ver com aqueles que eram prepotentemente exigidos pela ditadura da época.
A coragem torna-se um vazio semântico se a excluirmos do contexto concreto em que se exerceu. Os soldados que combateram nos exércitos nazis, durante a 2ª Guerra Mundial, também eram à sua maneira corajosos. Mas não é dessa coragem que precisamos para edificar um mundo mais justo e democrático, onde exista espaço para um pacífico diálogo entre as civilizações.
Cavaco parece querer reescrever a nossa História, ao eliminar da nossa memória colectiva as atrocidades cometidas em nome de uma pátria que para muitos não passava de uma ficção.
Esperemos que não esteja, na sua alucinação discursiva, a pensar numa nova "cruzada patriótica", como solução para a crise em que nos encontramos e da qual também é responsável. E como já não há territórios a conquistar, nem mouros ou negros a abater, aquela só poderá ser a cruzada de um onirismo grotesco gerado pelos pesadelos do nosso presidente.

2 comentários:

  1. É o Cavaco que já se não vigia. Vamos ter muitas destas no lustro que vem.

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  2. Teremos «muitas destas», mas o tempo é outro e o povo é poderoso!!! (Pelo menos assim quero pensar!!!...)

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