domingo, 13 de março de 2011

O "Day After" - A Manifestação do País à Rasca

Pintura de Ensor
O povo saiu de novo à rua. Com pandeiretas, gaitas de foles, tubas, trombetas, guitarras, violas, concertinas, vozes desafinadas e afinadas; novos, menos novos, maduros e velhos, todos ali de corpo e alma na mesma vontade de gritar a sua revolta. Era uma multidão caótica como é próprio das multidões. Cartazes e folhetos artesanais, palavras de ordem sem ordem, frases à deriva, passadas ao ritmo de cada fôlego, lamentos esparsos, gargalhadas, gritos convictos, risos provocatórios, máscaras e mascarados, formas plurais de encenação de um auto carnavalesco contra os desvarios e prepotências do poder político.
Um corpo colectivo sem lideranças a exibir a festa do protesto, a mostrar aos senhores mandantes e seus capangas que o povo (palavra abstracta que desagrada à snobeira de muitos comentadores políticos) ainda sabe, quando quer, usar politicamente a liberdade conquistada.
Os peritos do comentário político na televisão ou na imprensa, cuja função é com a sua sabedoria pensar por nós, acharam que é mais um sinal dos tempos de crise, não disseram muito mais, certamente porque ainda estavam a digerir os efeitos do evento. No Público (13-3-2011), a Drª Maria Filomena Mónica, com a sua pose habitual, desenvolve um pouco mais a matéria. Para esta atenta socióloga, “É mentira que mais ensino conduza necessariamente a uma economia mais dinâmica”. E divide meticulosamente os jovens contestatários diplomados em 3 categorias: os mitras, os boys e os betos. Cada grupo com os seus tutores diferenciados: os dos pais pobres; os dos pais das classes médias com boas relações políticas; e os dos pais ricos há muitas gerações. Há, por outro lado, uma inflação de diplomas para o mercado de trabalho existente, pois, segundo a articulista, “Portugal teve a percentagem mais elevada de estudantes pós-graduados do mundo”, entre 2000 e 2007. O fim feliz desta história estará para os betos e os boys. Quanto aos mitras, bem podem protestar, já que nada pode alterar o fatalismo histórico: “acabarão em empregos mal remunerados e no desemprego”.
Fim trágico para os pais destes que gastaram as parcas reservas para dar um futuro digno aos filhos, defraudados até ao tutano das suas vidas.
Esta narrativa exemplar da Drª Filomena aponta frontalmente para dois grandes responsáveis: os governos que incitaram os jovens, contra ventos e marés, à obtenção de diplomas como garantia de emprego certo, e as Instituições Universitárias que venderam gato por lebre, ou seja, cursos sem qualquer mérito reconhecível.
Não se pense, no entanto, que a Drª tenha uma visão anti-democrática do ensino: “É verdade que filhos de sapateiros deixaram de ser sapateiros e as filhas das criadas de servir de ser empregadas domésticas, uma realidade positiva. Mas a qualidade da educação não deveria ter sido, como foi, sacrificada”. Ora supõe-se, então, que foram os filhos dos sapateiros e as filhas das criadas de servir que literalmente arruinaram a qualidade do nosso ensino universitário. Mas a bondade social de F. Mónica esquece, aliás, uma perversão da democracia ocidental, pois, como acentua Paul Krugman, relativamente à diferença de oportunidades entre os filhos dos ricos e os dos pobres, no que concerne à mobilidade no ensino americano, um jovem inteligente oriundo de uma família pobre tem muito menos hipóteses de aceder ao ensino superior, do que um jovem muito menos dotado de uma família rica. A isto chama-se reprodução social através do ensino.
Mas, voltando à manifestação do dia 12, a articulista, com a qual aliás estou de acordo em relação à denúncia da má qualidade de muitos cursos superiores em Portugal (públicos e privados), acaba por revelar o seu desprezo por tal evento, ao desvalorizar os méritos académicos dos seus promotores: “são todos licenciados em Relações Internacionais. Isto habilita-os a quê? Alguém se deu ao trabalho de olhar o conteúdo destes cursos? Os docentes que os regem sabem do que falam? Duvido.”
Para lá do seu desprezo por tais matérias, não estará a pensar neles como prováveis filhos de sapateiros ou de criadas de servir? A sequência do seu discurso torna pertinente tal interrogação: filhos de sapateiros e filhas de criadas de servir; a deficiente qualidade da educação; todos licenciados em Relações Internacionais
Mas, cara Drª, o protesto foi um exemplo de educado civismo e quanto à sua componente carnavalesca, ela foi sempre uma arma espectacular e discursiva dos povos contra a prepotência dos poderosos, por isso foi, pelo menos desde a Idade Média, reprimida por estes.

Sem comentários:

Enviar um comentário