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Luísa Neto Jorge |
Cronologias institucionais à parte, a efeméride serve-me para dar a palavra à poeta Luísa Neto Jorge, uma companheira longínqua do meu curto exílio parisiense na década de 60. Rosto a diluir-se nos fumos do tempo, resta-me a tua voz poética para te reconfigurar aqui e agora.
A mulher de areia
conduziu no vento
os grãos do corpo
rios a fazem e trazem
garfos a possuem
escorrem nos dentes
seus olhos de lâmpada
Mulher íntima
máquina mão detida
objecto propagado ao mar
Quando a mulher
se transformou cabra
marés anuíram
ao ciclo recente
das águas
ah
as bombas
desceram em paraquedas
antes dos homens
Esta é a revolta
a metamorfose
onde
equinócios mecânicos
abortam os filhos
Cabra só cabra
espeta
nas pernas dos pagens
os cornos alucinantes
como para ergueres dos mortos
a necessidade da vida
antes
A mulher se transformou cabra
ritual de emigração
em resposta à raiz constante
das árvores
ao grande silêncio empastado
nas letras de imprensa
Foi quando a mulher
Foi quando a mulher
se fez cabra
no compasso de fúria
contra a batuta
dos chefes de orquestra
que escorrem gritos
das notas de música
Fez-se cabra
Fez-se cabra
desatenta de origens
cabra com fardo de cio
no peso das tetas
Cabra bem cabra
adoçando a fome
na flor dos cardos
(Quando a cabra
voltar mulher
- ressurreição)
Poemas de Terra Imóvel (1964)
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