sábado, 12 de março de 2011

Encontros e Desencontros de duas Gerações à Rasca

Júlio Pomar - O Almoço do Trolha
Uma farsa trágica em um acto,
de pendor neo-realista

O diálogo desenrola-se na estação do metropolitano de Entrecampos.
Personagens:
João - desempregado de longa duração, com 60 anos
Francisco - desempregado recém-licenciado em Ciências Sociais, com 24 anos


João – Ó amigo, não se arranja um cigarrito?
Francisco – Não vê que estou com pressa!
João – Mas para onde vais tão apressado, que nem tempo tens para dar uma passa a este viciado de longa duração?
Francisco – Vou à manifestação dos “quinhentoseuristas”!
João – À dos quê? Isso tem a ver com os protestos dos benfiquistas contra o roubo das arbitragens?
Francisco – Claro que não! Você não lê jornais, nem vê televisão? Nunca ouviu falar do protesto colectivo da geração à rasca, dos seiscentos mil desempregados, dos alugados a recibo verde, uma nova forma de escravatura?
João – Desculpe se o ofendi com a minha ignorância. Como vi algumas bandeiras vermelhas, pensei que se tratava da revolta benfiquista.
Francisco – Na nossa manifestação há bandeiras de todas as cores. Você, além de ignorante parece-me daltónico. Mas em que mundo vive você? O povo desempregado está na rua e você fala-me de futebol!
João – Na rua vivo eu há já uns anos. Não me venha dar lições de rua, que eu nisso sou mestre. Conheço-a como as palmas das minhas mãos. É uma espécie de segunda pele. A rua para mim foi uma espécie de destino. Trabalhava com a minha mulher numa multinacional. Fomos ambos despedidos vai aí para uns dez anos. Os gajos foram para o Vietname e deixaram-nos de estômago vazio. Parece que os vietnamitas quase não comem. Trabalham a troco de uma bacia de arroz por mês. Ainda recebemos umas massas da Segurança Social, depois sem cheta já não pudemos pagar as prestações da casita. E agora a nossa nova casa é a rua. Eu por aqui, a minha mulher por acolá. Nunca mais lhe pus a vista em cima. E com 60 anos já ninguém me dá trabalho.
Francisco – Tente no Pingo Doce. O dono, um dos duzentos mais ricos do mundo, diz que não consegue arranjar talhantes, para ele o pessoal não quer é trabalhar.
João – Talhante, eu? Já não tenho idade para aprender a cortar carne. Aliás odeio ver o sangue de bichos mortos. Sou mecânico e disso fiz a minha vida, até os filhos da puta me despedirem.
Francisco – Então porque não vens connosco à manifestação?
João – Para quê?
Francisco – Para darmos uma solução à crise. Mudar esta vida de merda. Acabar com o desemprego. Somos já muitos milhares. Unidos retomaremos a nossa dignidade. Agora até há aí uns senhores que, no âmbito da salvação nacional, propõem privatizar tudo, até mesmo o ar.
João – Então quem não tiver cacau, já nem poderá respirar? Bem fez o meu cunhado que se pirou para França nos anos 60. Dizem que nessa altura um milhão e meio de portugas fizeram o mesmo. A mesma sorte não teve o meu irmão mais velho que veio da guerra de África sem as pernas. Sobrevive com uma pensão de merda e a mulher vai muitas vezes à sopa dos pobres.
Francisco – O que lá vai, lá vai. Outros tempos, outros problemas, outras soluções. Temos de lutar por um Portugal renovado, que não deite para o lixo a geração com mais nível de formação na história do país.
João – Mas isso é uma geração de doutores! Eu cá só tenho a 4ª classe. Era o normal quando era miúdo. E muitos nem disso se podiam gabar, nem o cu sentavam nas cadeiras da escola. Só os remediados e os ricos podiam ir mais além. Passei fome de criar bicho, trabalhei anos como ajudante de marçano, mas o meu sonho era vir a ser mecânico. Comecei a trabalhar como ajudante numa oficina de automóveis, fiz das tripas coração, até que um dia consegui emprego na multinacional. Os vietnamitas é que bem me lixaram.
Francisco – Mas agora há liberdade para protestarmos. E, além disso, somos mais cultos.
João – E para morrer de fome também. Sabes, deixei de acreditar em lutas colectivas. Tento safar-me no dia a dia. Uns biscates de vez em quando. Às vezes vou ao lixo dos restaurantes, quando o estômago aperta.
Francisco – Se actuarmos em conjunto, imporemos uma alteração rápida desta realidade.
João – Não me digas que conseguem trazer de volta a minha fábrica de componentes de automóveis. O Vietname é lá tão longe!...
Francisco – Quem te lixou não foram os vietnamitas, mas a gula infindável do lucro.
João – Não me digas que és comuna?
Francisco – Nalgumas coisas sim, noutras não. Sabes, hoje as ideologias já não são o que eram. Hoje somos  talvez mais pragmáticos e menos idealistas. Somos mais desconfiados relativamente aos rumos do mundo, muitos de nós perderam as convicções quase religiosas de certas ideologias de esquerda. Falo apenas em meu nome, é claro. Sou apenas um dos porta-vozes da urgência do protesto colectivo. Trabalhadores, políticos e empresários têm de colaborar em conjunto na renovação da sociedade portuguesa. Mas nem todos pensam assim. E embora os partidos sejam uma componente fundamental desta democracia, penso que é o momento de dar voz  àqueles que neles não se reconhecem. E estes são hoje a maioria da população portuguesa.
João – Também já não acredito nos partidos nem em Nossa Senhora de Fátima. Mas falas demasiado caro para o meu entendimento. Mas tu, com todo esse saber universitário, achas mesmo que é possível mudar isto sem os partidos e os sindicatos metidos ao barulho? Bem, já chega de politiquices. Não tarda muito, tenho é de ir tratar da minha vidinha. Arranjar os cartões  e um cantinho para a soneca nocturna, a concorrência é cada vez maior e não nos podemos distrair, com este frio nem todos os buracos são confortáveis. Ah! É verdade, não tens aí uns trocos para matar o ratinho que tenho no bucho?
Francisco – Também sou um teso! Mas para que fique claro, nós não somos contra os partidos, aliás nem todos têm a mesma responsabilidade no descalabro a que chegámos, mas chegou a hora  de a sociedade civil se fazer ouvir. O poder popular está de novo na rua.
João – Com o teu saber universitário bem me confundes, dás uma no cravo e outra na ferradura. Não sei se o teu poder popular  se aproxima daquele que há 30 e tal anos animou as hostes trabalhadoras. Nesse tempo as minhas esperanças assemelhavam-se às tuas. Era novo e combativo. Mas vê lá na merda que isto deu. Euros e mais euros para nada. Ou melhor, para encher a pança dos já pançudos e das suas clientelas. E eu para aqui lixado a viver na rua. Da minha Joana já nem sei por onde anda. Se calhar pela estrada a fazer pela vida, se é que a idade ainda lho permite. A minha única preocupação é sacar umas coroas para a comidinha. Custa-me muito pedir esmola. O pessoal olha para nós como se fôssemos parte da lixeira. Têm-nos nojo. Nem para nós olham a direito. Somos os nómadas da noite, como alguém me leu num livro .
Otto Griebel - A Internacional (1930
Francisco – Sabes, muitos de nós são diplomados. Mas, para ser sincero, como tu o foste comigo, confesso-te que, apesar do nosso saber académico, também ainda não entendemos como foi possível termos chegado a isto. Nem tudo foi negativo obviamente nestes 30 anos, mas o descalabro financeiro e a corrupção são sintomas de uma sociedade doente. E a crise internacional não justifica, senão parcialmente, este descalabro. Para já  queremos um futuro mais digno. Vamos mostrar na rua a nossa força, embora pouco saibamos do que virá a seguir. Chamas-te João, e aprendi muito contigo, e poderás ser mais um nome entre a multidão em revolta. Esquece por agora os teus cartões de dormir e vem connosco à manifestação. Mesmo que não tenha efeitos práticos, ficará para a memória do futuro.
João – Está bem, ó doutor. Convenceste-me. Vamos ver no que dá. Espero não levar nenhuma bordoada da polícia. Talvez tenhas razão, é preciso dizer basta.  

2 comentários:

  1. Gosto. Gostei muito. Em tempos passados, antes do 25 de Abril, no 1º.Acto em Algés, isto (isto, não, porque não adivinhavamos o futuro, mas alguma coisa como isto) poderia ser dito por dois de nós, numa daquelas sessões em que era dita poesia (o Fanha e o Mário Viegas seriam certos) e onde a canção de protesto se soltava (Letria, Zeca, por exemplo entre os que na altura estavam no País). E porque não a guitarra de outro convidado nosso, o Carlos Paredes? A memória é o combustível do presente, segundo Tiago Rodrigues, o autor e encenador de Bela Adormecida, espectáculo da Companhia Maior de que faço parte. Eu diria que é a minha riqueza maior...

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  2. Um velho: Desculpem-me e esperem lá, estive à escuta da vossa conversa. O que é que vocês vão lá fazer nessa maifestação?
    Francisco: Ó seu sabichão de data caducada, não meta o bico onde não é chamado!
    João: É pá, deixa-o falar, que a conversa é de graça.
    O velho: No meu tempo ainda se cantava:
    "De pé, ó vítimas da fome!
    De pé, famélicos da terra!
    . . .
    . . .
    Uma terra sem amos
    A Internacional."
    Mas hoje o que nos falta, são amos, amos que nos dêm oportunidades.
    Francisco: O governo que as crie!
    João: Ó rapaz, não vês que as administrações públicas estão obrigadas a reduzir pessoal?
    Francisco: Agora sou eu que estou na dúvida: então para quê essa nossa manifestação?
    O velho: Calma, só poderia ser uma manifestação de, como é que hei-de dizer, de autoreflexão: Vamo-nos mexer de verdade em iniciativas de produção e de serviços! Então sim, que peçam o apoio de estruturas administrativas.
    João: Ora essa, eu com os meus 60 anos!
    Francisco: E eu que me formei para que me procurem!
    O velho: Pois é, e os governantes, neste mundo em que vivemos, ainda que não o confessem, passaram a considerar este precariado de desempregados e outros desapoiados como uma porção de massa rejeitada por uma peneira social, ainda tolerável, mas cujas malhas se apertam cada vez mais.
    Francisco: Então vamos à manifestação ou não?
    João: Vamos!

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